GÊNERO NEUTRO NO REGISTRO CIVIL: UMA ANÁLISE DA DECISÃO HISTÓRICA DO STJ E SEUS REFLEXOS NO DIREITO DE FAMÍLIA

Genero Neutro No Registro Civil Uma Analise Da Decisao Historica Do Stj E Seus Reflexos No Direito De Familia

Uma Conquista da Dignidade: STJ Reconhece o Gênero Neutro e Redefine Contornos da Identidade Civil no Brasil

 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em uma decisão vanguardista e profundamente humanitária datada de 7 de maio de 2025, abriu um precedente monumental no ordenamento jurídico brasileiro ao autorizar, pela primeira vez, a inclusão do gênero neutro no registro civil de uma pessoa. Este julgamento, proferido pela Terceira Turma da Corte, não apenas reflete a evolução do pensamento social sobre identidade de gênero, mas também reafirma o compromisso do Judiciário com a proteção dos direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana, pilares do Estado Democrático de Direito. Como advogado especialista em Direito de Família, analiso neste artigo os contornos dessa decisão, suas implicações e o impacto transformador que ela representa para milhares de brasileiros que não se identificam com o binarismo de gênero (masculino/feminino).

 

O Caso Concreto: A Busca Pela Autenticidade e o Direito à Autoidentificação

 

O caso que culminou nesta decisão histórica envolveu uma pessoa que, após passar por um processo de transição de gênero, incluindo cirurgias e tratamentos hormonais, percebeu que sua identidade não se alinhava completamente nem com o gênero masculino, nem com o feminino. Diante dessa constatação íntima e da necessidade de ver sua realidade refletida em seus documentos civis, buscou o Poder Judiciário. A angústia vivenciada pelo indivíduo foi sensivelmente destacada pela Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, que ressaltou o sofrimento de quem, mesmo após um complexo processo de redesignação, não encontra acolhimento nas categorias tradicionais de gênero.

 

A decisão do STJ, unânime, fundamentou-se no entendimento de que o direito à identidade autopercebida é um corolário do direito à dignidade e do direito à felicidade, este último já chancelado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em diversas ocasiões. O Tribunal da Cidadania compreendeu que a Justiça não deve impor uma identidade de gênero, mas sim reconhecer aquela com a qual a pessoa efetivamente se identifica, seja ela binária ou não-binária. Este é um passo crucial para garantir o mínimo de segurança e respeito que as pessoas binárias já usufruem desde o nascimento.

 

O Que Significa “Gênero Neutro” e a Realidade das Pessoas Não-Binárias

 

Para compreender a magnitude desta decisão, é essencial entender o que se convencionou chamar de gênero neutro ou a experiência da não-binariedade. Pessoas não-binárias são aquelas cuja identidade de gênero não se encaixa exclusivamente como homem ou mulher. Podem identificar-se com ambos os gêneros, com nenhum deles, ou ter uma identidade de gênero que flui entre diferentes polos. O termo “gênero neutro” no contexto do registro civil surge como uma forma de reconhecer legalmente essa diversidade, permitindo que o Estado não imponha uma classificação binária que não corresponde à vivência do indivíduo.

 

No Brasil, embora ainda não exista uma legislação específica que trate da retificação de registro civil para gênero neutro, a decisão do STJ se ampara nos princípios constitucionais e em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário. A ausência de lei específica não pode ser óbice para a proteção de direitos fundamentais, e o Judiciário, nesse sentido, cumpre um papel contramajoritário essencial.

 

Fundamentos Jurídicos da Decisão e o Papel do STJ

 

A Ministra Nancy Andrighi, em seu voto, e os demais ministros da Terceira Turma, como a Ministra Daniela Teixeira, enfatizaram que a Justiça não pode fazer distinção entre pessoas transgêneras binárias – que já possuem o direito à alteração de nome e gênero no registro civil, conforme decisão do STF na ADI 4275 e no RE 670422 – e aquelas pessoas não-binárias no Brasil que também buscam o reconhecimento de sua identidade.

Os principais fundamentos jurídicos que sustentam a decisão incluem:

 

  1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CF): Considerado o núcleo axiológico da Constituição Federal, impõe o respeito à autonomia individual e à identidade de cada pessoa.
  2. Direito à Identidade Pessoal e de Gênero: O direito de ser quem se é, incluindo a forma como a pessoa se percebe e se apresenta ao mundo em termos de gênero.
  3. Direito à Felicidade: Entendido como o direito de buscar a realização pessoal e de viver de acordo com as próprias convicções, desde que não se prejudiquem terceiros.
  4. Princípio da Igualdade e da Não Discriminação (Art. 5º, caput, CF): Veda qualquer forma de discriminação em razão de gênero ou orientação sexual.
  5. Autonomia da Vontade e Autodeterminação: O reconhecimento da capacidade do indivíduo de definir sua própria identidade.

 

A decisão do STJ, ao reconhecer o gênero neutro no registro civil, alinha o Brasil a um movimento internacional crescente de reconhecimento de identidades não-binárias, já presente em países como Alemanha, Argentina, Canadá, Austrália, entre outros.

 

Implicações da Decisão para o Direito de Família e Outras Áreas

 

Embora a decisão trate especificamente da retificação do registro civil, suas ondas de impacto se estenderão por diversas áreas do Direito, especialmente o Direito de Família. Algumas reflexões iniciais incluem:

 

  • Casamento e União Estável: A decisão reforça a ideia de que o afeto e a vontade de constituir família são os elementos centrais das uniões, independentemente do gênero dos envolvidos. Casais onde um ou ambos os cônjuges/companheiros se identificam como de gênero neutro terão sua união plenamente reconhecida.
  • Filiação e Parentalidade: A forma como os vínculos de filiação são estabelecidos e registrados poderá ser impactada, especialmente no que tange à nomenclatura utilizada para designar os genitores (ex: “genitor 1” e “genitor 2” ou outras formas neutras, em vez de “pai” e “mãe”). A multiparentalidade e as diversas configurações familiares contemporâneas ganham mais um contorno de reconhecimento.
  • Direito Sucessório: A identidade de gênero não interfere na ordem de vocação hereditária, mas a clareza no registro civil evita ambiguidades e garante a correta aplicação das normas sucessórias.
  • Documentos e Formulários: A decisão pressiona por uma adaptação de documentos públicos e privados, formulários e sistemas para que contemplem opções de gênero para além do binário, promovendo inclusão e evitando constrangimentos.
  • Políticas Públicas: O reconhecimento legal do gênero neutro é um passo fundamental para a formulação de políticas públicas mais inclusivas e eficazes para a população não-binária, em áreas como saúde, educação e segurança.

 

Desafios e Próximos Passos: A Construção de um Marco Legal Abrangente

 

A decisão do STJ é um marco, mas a jornada pela garantia plena dos direitos das pessoas não-binárias no Brasil continua. Alguns desafios e próximos passos incluem:

 

  • Segurança Jurídica e Padronização: É fundamental que haja uma regulamentação mais clara, possivelmente por meio de provimentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou, idealmente, através de legislação específica, para orientar os cartórios de registro civil em todo o país sobre como proceder nesses casos, garantindo uniformidade e evitando decisões conflitantes.
  • Conscientização e Educação: A sociedade e os operadores do Direito precisam ser educados sobre a diversidade de identidades de gênero para combater o preconceito e a transfobia.
  • Impacto em Outros Documentos: A alteração no registro civil deve se refletir em outros documentos de identificação (RG, CPF, passaporte, título de eleitor), o que demandará uma articulação entre diferentes órgãos públicos.
  • Discussão Legislativa: O Congresso Nacional precisa ser provocado a debater e legislar sobre o marco legal da identidade de gênero de forma ampla, contemplando as especificidades das pessoas não-binárias e garantindo proteção integral.

 

Conclusão: Um Futuro Mais Inclusivo e Respeitoso

 

A decisão do Superior Tribunal de Justiça que reconheceu o gênero neutro no registro civil é mais do que uma simples alteração documental; é um ato de reconhecimento da humanidade e da dignidade de uma parcela da população historicamente invisibilizada. Ela representa um avanço civilizatório, alinhado com os mais elevados valores constitucionais e de direitos humanos.

Como operadores do Direito, e especialmente como advogados de Direito de Família, temos o dever de compreender, aplicar e difundir os alcances dessa decisão, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e respeitosa com todas as formas de ser e amar. O direito à identidade de gênero é, em sua essência, o direito de existir plenamente.

 

A luta por direitos é contínua, e cada vitória, como esta, deve ser celebrada e utilizada como combustível para os próximos desafios. O impacto social da decisão do STJ sobre gênero neutro será sentido progressivamente, à medida que mais pessoas buscarem o reconhecimento de sua identidade e que a sociedade se abra para a riqueza da diversidade humana.

 

Espero que este artigo atenda às suas expectativas.

Se você ou alguém que conhece precisa de orientação jurídica especializada em questões de Direito de Família, retificação de registro civil, reconhecimento de identidade de gênero ou outros temas correlatos, entre em contato. Estou à disposição para auxiliar na busca por seus direitos e por uma vida com mais dignidade e respeito.

Dr. Rafael Rocha Advogado Especialista em Direito de Família Telefone/WhatsApp: (62) 99652-8637 Redes Sociais: @doutorrafaelrocha

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