COMO EMPRESTAR UM IMÓVEL SEM TER O RISCO DA USUCAPIÃO
Vez ou outra alguém acaba emprestando um imóvel para outra pessoa, seja por existir um vínculo familiar, amizade ou um ato de bondade/generosidade da pessoa que empresta esse bem.
Pode ocorrer, após esse empréstimo, que quem recebeu o bem, agindo de forma muito desleal, busque usucapir o imóvel.
No início, a relação entre quem empresta e quem recebe o imóvel será muito agradável e amistosa, com o passar do tempo, entretanto, diversos problemas podem surgir, desde o enfraquecimento da relação de amizade, brigas familiares, disputas, ofensas e até a ganância podem alterar esse cenário inicial.
Nesse momento, quem recebeu o imóvel pode vir a pedir a sua propriedade, judicialmente ou extrajudicialmente, podendo obtê-la, a depender de outras circunstâncias e cumprimento dos requisitos legais para a ação de usucapião.
E, para que dono do imóvel faça esse ato de caridade, sem que corra o risco de sofrer uma eventual ação de usucapião futuramente, é importante que ele adote as medidas que a lei prevê para resguardar o seu bem.
Explicarei, nesse texto, de forma simples, como o proprietário pode se precaver dessa surpresa desagradável.
Usucapião
A usucapião é uma forma de aquisição da propriedade de um bem móvel ou imóvel, assim como as demais formas existentes.
O prazo para que a usucapião ocorra, em relação aos imóveis, varia de 5 (cinco), 10 (dez) ou 15 (quinze) anos.
O tempo de posse, entretanto, é apenas um dos requisitos imprescindíveis para que seja permitida a usucapião.
Para que alguém consiga a propriedade de um imóvel, através dessa modalidade de aquisição, é necessário que exista a posse sem o vício da precariedade.
Posse precária
A posse, para fins de usucapião, deve ser aquela com animus domini, isto é, o possuidor utiliza do imóvel como se dono fosse. Exemplo disso é quando este faz benfeitorias no imóvel, construções, paga o IPTU e demais despesas inerentes do bem.
A precariedade da posse é um vício que não possibilita a aquisição do bem pela usucapião, em razão da quebra de confiança em face de outra pessoa. Esse vício não é suscetível de saneamento, no curso do tempo.
Sobre o conceito de posse precária, Flávio Tartuce[1] ensina:
Posse precária é a obtida com abuso de confiança ou de direito (precario). Tem forma assemelhada ao crime de estelionato ou à apropriação indébita, sendo também denominada esbulho pacífico. Exemplo: locatário de um bem móvel que não devolve o veículo ao final do contrato.
O art. 1.208 do Código Civil (CC), assim trata a questão:
Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.
Havendo a existência do empréstimo do imóvel, uma locação ou depósito da coisa, não haverá a posse necessária para pedir a usucapião do bem, conforme entendimento da justiça:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS. COMODATO. ATOS DE MERA PERMISSÃO OU TOLERÂNCIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. MAJORAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA.
1. Os atos de mera permissão ou tolerância, sem o animus domini, não induzem posse (artigo 1208 do Código Civil), portanto, não geram o direito à aquisição da propriedade por meio de usucapião.
2. Uma vez não comprovada a posse ad usucapionem porque evidenciado nos autos que o demandante, desde a origem, ocupa os imóveis usucapiendos em face da inequívoca liberalidade do proprietário, torna-se inadmissível o reconhecimento da prescrição aquisitiva.
3. Tendo em vista o desprovimento da insurgência, impõe-se a majoração dos honorários advocatícios sucumbenciais.
4. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Apelação Cível 5363163-37.2017.8.09.0076, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR GERSON SANTANA CINTRA, 3ª Câmara Cível, julgado em 30/03/2022, DJe de 30/03/2022).
AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE E AÇÃO DE USUCAPIÃO. Improcedência do pedido de usucapião. Medida acertada. Falta, na hipótese, de efetiva comprovação de atos possessórios exigidos para a prescrição aquisitiva. Ocupação do imóvel a título de comodato. Inexistente demonstração de que rompida a autorização prestada pelo titular do imóvel e que, a partir da transmutação, estabeleceu-se a posse com ânimo de proprietário. Ônus de incumbência das autoras da ação. Emprego do art. 373, I, do CPC. Reclamada indenização. Impossibilidade. Comodatárias que não podem recobrar as despesas estabelecidas para a utilização do imóvel. Necessária observância do disposto no art. 584 do Código Civil. APELO DESPROVIDO.
(TJSP; Apelação Cível 1016633-31.2020.8.26.0564; Relator (a): Donegá Morandini; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo – 9ª Vara Cível; Data do Julgamento: 01/08/2022; Data de Registro: 01/08/2022)
E o que pode ser feito, então, para que fique caracterizada a existência dessa posse precária para que o imóvel não sofra a usucapião? Contrato por escrito.
Contrato escrito de comodato
A melhor forma do proprietário se resguardar em relação ao imóvel que foi emprestado é fazer um contrato de comodato por escrito.
Não há empecilho para que o comodato seja reconhecido como válido quando feito de forma verbal, contudo, essa prova poderá se tornar de difícil produção, numa relação como essa, e como será ônus do proprietário prová-la, melhor é não correr esse risco de depender de testemunhas ou outros meios probatórios.
Comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis (art. 579 do CC). É o contrato exato para quem empreste um imóvel sem que haja recebimento de algum valor por isso, caso haja, o contrato correto seria o de aluguel.
O comodato não precisa ter um tempo fixo, apesar de você ter a oportunidade de fixá-lo (art. 581 do CC). E quem recebeu o imóvel é obrigado a conservá-lo como se fosse sua, não podendo usá-lo para finalidade diferente da qual foi concedido, nos termos do art. 582 do CC.
Os custos que envolvem o uso e gozo do bem não poderão ser ressarcidos de quem emprestou o imóvel.
Existindo o comodato, quem recebeu o imóvel, mesmo que permaneça nele por 5 (cinco), 10 (dez), 15 (quinze) anos ou qualquer outro prazo, por maior que seja, não conseguirá obter o imóvel via usucapião.
A sua posse é precária, o que inviabiliza a aquisição do bem por esse meio.
Não havendo o interesse de qualquer das partes em continuar com o empréstimo do imóvel, basta realizar a notificação da outra.
Para o proprietário do imóvel, após a notificação, bastará aguardar o prazo de 30 (trinta) dias para que haja a desocupação do imóvel que, se não for atendida, poderá resultar em ação de reintegração de posse, inclusive com a concessão de medida liminar para retirada do ocupante do bem.
[1] Tartuce, Flávio. Direito Civil : direito das coisas – v. 4 / Flávio Tartuce. – 11. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, pág. 83.
Dr. Rafael Rocha Filho